Discurso do Papa aos Movimentos Populares (texto integral)
Papa
Francisco: discurso durante o II Encontro Mundial dos Movimentos Populares em
Bolívia - REUTERS
10/07/2015 08:38
PARTILHA:
Versão integral do
discurso do Papa Francisco aos Movimentos Populares reunidos na Bolívia:
(Bolívia, Santa
Cruz – Expo Feira, 9 de Julho de 2015)
Boa tarde a todos!
Há alguns meses,
reunimo-nos em Roma e não esqueço aquele nosso primeiro encontro. Durante este
tempo, trouxe-vos no meu coração e nas minhas orações. Alegra-me vê-vos de novo
aqui, debatendo os melhores caminhos para superar as graves situações de
injustiça que padecem os excluídos em todo o mundo. Obrigado Senhor Presidente
Evo Morales, por sustentar tão decididamente este Encontro.
Então, em Roma, senti
algo muito belo: fraternidade, paixão, entrega, sede de justiça. Hoje, em Santa
Cruz de la Sierra, volto a sentir o mesmo. Obrigado! Soube também, pelo
Pontifício Conselho «Justiça e Paz» presidido pelo Cardeal Turkson, que são
muitos na Igreja aqueles que se sentem mais próximos dos movimentos populares.
Muito me alegro por isso! Ver a Igreja com as portas abertas a todos vós, que
se envolve, acompanha e consegue sistematizar em cada diocese, em cada comissão
«Justiça e Paz», uma colaboração real, permanente e comprometida com os
movimentos populares. Convido-vos a todos, bispos, sacerdotes e leigos,
juntamente com as organizações sociais das periferias urbanas e rurais a
aprofundar este encontro.
Deus permitiu que
nos voltássemos a ver hoje. A Bíblia lembra-nos que Deus escuta o clamor do seu
povo e também eu quero voltar a unir a minha voz à vossa: terra, tecto e
trabalho para todos os nossos irmãos e irmãs. Disse-o e repito: são direitos
sagrados. Vale a pena, vale a pena lutar por eles. Que o clamor dos excluídos
seja escutado na América Latina e em toda a terra.
1.
Comecemos por reconhecer que precisamos duma mudança. Quero esclarecer, para
que não haja mal-entendidos, que falo dos problemas comuns de todos os
latino-americanos e, em geral, de toda a humanidade. Problemas, que têm uma
matriz global e que actualmente nenhum Estado pode resolver por si mesmo. Feito
este esclarecimento, proponho que nos coloquemos estas perguntas:
- Reconhecemos nós
que as coisas não andam bem num mundo onde há tantos camponeses sem terra,
tantas famílias sem tecto, tantos trabalhadores sem direitos, tantas pessoas
feridas na sua dignidade?
- Reconhecemos nós
que as coisas não andam bem, quando explodem tantas guerras sem sentido e a
violência fratricida se apodera até dos nossos bairros? Reconhecemos nós que as
coisas não andam bem, quando o solo, a água, o ar e todos os seres da criação
estão sob ameaça constante?
Então digamo-lo sem
medo: Precisamos e queremos uma mudança.
Nas vossas cartas e
nos nossos encontros, relataram-me as múltiplas exclusões e injustiças que
sofrem em cada actividade laboral, em cada bairro, em cada território. São
tantas e tão variadas como muitas e diferentes são as formas próprias de as
enfrentar. Mas há um elo invisível que une cada uma destas exclusões:
conseguimos nós reconhecê-lo? É que não se trata de questões isoladas.
Pergunto-me se somos capazes de reconhecer que estas realidades destrutivas
correspondem a um sistema que se tornou global. Reconhecemos nós que este
sistema impôs a lógica do lucro a todo o custo, sem pensar na exclusão social
nem na destruição da natureza?
Se é assim –
insisto – digamo-lo sem medo: Queremos uma mudança, uma mudança real, uma
mudança de estruturas. Este sistema é insuportável: não o suportam os
camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o suportam as comunidades, não
o suportam os povos.... E nem sequer o suporta a Terra, a irmã Mãe Terra, como
dizia São Francisco.
Queremos uma
mudança nas nossas vidas, nos nossos bairros, no vilarejo, na nossa realidade
mais próxima; mas uma mudança que toque também o mundo inteiro, porque hoje a
interdependência global requer respostas globais para os problemas locais. A
globalização da esperança, que nasce dos povos e cresce entre os pobres, deve
substituir esta globalização da exclusão e da indiferença.
Hoje quero
reflectir convosco sobre a mudança que queremos e precisamos. Como sabem,
recentemente escrevi sobre os problemas da mudança climática. Mas, desta vez,
quero falar duma mudança noutro sentido. Uma mudança positiva, uma mudança que
nos faça bem, uma mudança – poderíamos dizer – redentora. Porque é dela que
precisamos. Sei que buscais uma mudança e não apenas vós: nos diferentes
encontros, nas várias viagens, verifiquei que há uma expectativa, uma busca
forte, um anseio de mudança em todos os povos do mundo. Mesmo dentro da minoria
cada vez mais reduzida que pensa sair beneficiada deste sistema, reina a
insatisfação e sobretudo a tristeza. Muitos esperam uma mudança que os liberte
desta tristeza individualista que escraviza.
O tempo, irmãos e
irmãs, o tempo parece exaurir-se; já não nos contentamos com lutar entre nós,
mas chegamos até a assanhar-nos contra a nossa casa. Hoje, a comunidade
científica aceita aquilo que os pobres já há muito denunciam: estão a
produzir-se danos talvez irreversíveis no ecossistema. Está-se a castigar a
terra, os povos e as pessoas de forma quase selvagem. E por trás de tanto
sofrimento, tanta morte e destruição, sente-se o cheiro daquilo que Basílio de
Cesareia chamava «o esterco do diabo»: reina a ambição desenfreada de dinheiro.
O serviço ao bem comum fica em segundo plano. Quando o capital se torna um
ídolo e dirige as opções dos seres humanos, quando a avidez do dinheiro domina
todo o sistema socioecónomico, arruína a sociedade, condena o homem,
transforma-o em escravo, destrói a fraternidade inter-humana, faz lutar povo
contra povo e até, como vemos, põe em risco esta nossa casa comum.
Não quero
alongar-me na descrição dos efeitos malignos desta ditadura subtil: vós
conhecei-los! Mas também não basta assinalar as causas estruturais do drama
social e ambiental contemporâneo. Sofremos de um certo excesso de diagnóstico,
que às vezes nos leva a um pessimismo charlatão ou a rejubilar com o negativo.
Ao ver a crónica negra de cada dia, pensamos que não haja nada que se possa
fazer para além de cuidar de nós mesmos e do pequeno círculo da família e dos
amigos.
Que posso fazer eu,
recolhedor de papelão, catador de lixo, limpador, reciclador, frente a tantos
problemas, se mal ganho para comer? Que posso fazer eu, artesão, vendedor
ambulante, carregador, trabalhador irregular, se não tenho sequer direitos
laborais? Que posso fazer eu, camponesa, indígena, pescador que dificilmente
consigo resistir à propagação das grandes corporações? Que posso fazer eu, a
partir da minha comunidade, do meu barraco, da minha povoação, da minha favela,
quando sou diariamente discriminado e marginalizado? Que pode fazer aquele
estudante, aquele jovem, aquele militante, aquele missionário que atravessa as
favelas e os paradeiros com o coração cheio de sonhos, mas quase sem nenhuma
solução para os meus problemas? Muito! Podem fazer muito. Vós, os mais
humildes, os explorados, os pobres e excluídos, podeis e fazeis muito.
Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas
mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas criativas na
busca diária dos “3 T” (trabalho, tecto, terra), e também na vossa participação
como protagonistas nos grandes processos de mudança nacionais, regionais e
mundiais. Não se acanhem!
2.
Vós sois semeadores de mudança. Aqui, na Bolívia, ouvi uma frase de que gosto
muito: «processo de mudança». A mudança concebida, não como algo que um dia
chegará porque se impôs esta ou aquela opção política ou porque se estabeleceu
esta ou aquela estrutura social. Sabemos, amargamente, que uma mudança de
estruturas, que não seja acompanhada por uma conversão sincera das atitudes e
do coração, acaba a longo ou curto prazo por burocratizar-se, corromper-se e
sucumbir. Por isso gosto tanto da imagem do processo, onde a paixão por semear,
por regar serenamente o que outros verão florescer, substitui a ansiedade de
ocupar todos os espaços de poder disponíveis e de ver resultados imediatos.
Cada um de nós é apenas uma parte de um todo complexo e diversificado
interagindo no tempo: povos que lutam por uma afirmação, por um destino, por
viver com dignidade, por «viver bem».
Vós, a partir dos
movimentos populares, assumis as tarefas comuns motivados pelo amor fraterno,
que se rebela contra a injustiça social. Quando olhamos o rosto dos que sofrem,
o rosto do camponês ameaçado, do trabalhador excluído, do indígena oprimido, da
família sem tecto, do imigrante perseguido, do jovem desempregado, da criança
explorada, da mãe que perdeu o seu filho num tiroteio porque o bairro foi
tomado pelo narcotráfico, do pai que perdeu a sua filha porque foi sujeita à escravidão;
quando recordamos estes «rostos e nomes» estremecem-nos as entranhas diante de
tanto sofrimento e comovemo-nos…. Porque «vimos e ouvimos», não a fria
estatística, mas as feridas da humanidade dolorida, as nossas feridas, a nossa
carne. Isto é muito diferente da teorização abstracta ou da indignação
elegante. Isto comove-nos, move-nos e procuramos o outro para nos movermos
juntos. Esta emoção feita acção comunitária é incompreensível apenas com a
razão: tem um plus de sentido que só os povos entendem e que confere a sua
mística particular aos verdadeiros movimentos populares.
Vós viveis, cada
dia, imersos na crueza da tormenta humana. Falastes-me das vossas causas,
partilhastes comigo as vossas lutas. E agradeço-vos. Queridos irmãos, muitas
vezes trabalhais no insignificante, no que aparece ao vosso alcance, na
realidade injusta que vos foi imposta e a que não vos resignais opondo uma
resistência activa ao sistema idólatra que exclui, degrada e mata. Vi-vos
trabalhar incansavelmente pela terra e a agricultura camponesa, pelos vossos
territórios e comunidades, pela dignificação da economia popular, pela
integração urbana das vossas favelas e agrupamentos, pela auto-construção de
moradias e o desenvolvimento das infra-estruturas do bairro e em muitas actividades
comunitárias que tendem à reafirmação de algo tão elementar e inegavelmente
necessário como o direito aos “3 T”: terra, tecto e trabalho.
Este apego ao
bairro, à terra, ao território, à profissão, à corporação, este reconhecer-se
no rosto do outro, esta proximidade no dia-a-dia, com as suas misérias e os
seus heroísmos quotidianos, é o que permite realizar o mandamento do amor, não
a partir de ideias ou conceitos, mas a partir do genuíno encontro entre
pessoas, porque não se amam os conceitos nem as ideias; amam-se as pessoas. A
entrega, a verdadeira entrega nasce do amor pelos homens e mulheres, crianças e
idosos, vilarejos e comunidades... Rostos e nomes que enchem o coração. A
partir destas sementes de esperança semeadas pacientemente nas periferias
esquecidas do planeta, destes rebentos de ternura que lutam por subsistir na
escuridão da exclusão, crescerão grandes árvores, surgirão bosques densos de
esperança para oxigenar este mundo.
Vejo, com alegria,
que trabalhais no que aparece ao vosso alcance, cuidando dos rebentos; mas, ao
mesmo tempo, com uma perspectiva mais ampla, protegendo o arvoredo. Trabalhais
numa perspectiva que não só aborda a realidade sectorial que cada um de vós
representa e na qual felizmente está enraizada, mas procurais também resolver,
na sua raiz, os problemas gerais de pobreza, desigualdade e exclusão.
Felicito-vos por
isso. É imprescindível que, a par da reivindicação dos seus legítimos direitos,
os povos e as suas organizações sociais construam uma alternativa humana à
globalização exclusiva. Vós sois semeadores de mudança. Que Deus vos dê
coragem, alegria, perseverança e paixão para continuar a semear. Podeis ter a
certeza de que, mais cedo ou mais tarde, vamos ver os frutos. Peço aos
dirigentes: sede criativos e nunca percais o apego às coisas próximas, porque o
pai da mentira sabe usurpar palavras nobres, promover modas intelectuais e
adoptar posições ideológicas, mas se construirdes sobre bases sólidas, sobre as
necessidades reais e a experiência viva dos vossos irmãos, dos camponeses e
indígenas, dos trabalhadores excluídos e famílias marginalizadas, de certeza
não vos equivocareis.
A Igreja não pode
nem deve ser alheia a este processo no anúncio do Evangelho. Muitos sacerdotes
e agentes pastorais realizam uma tarefa imensa acompanhando e promovendo os
excluídos em todo o mundo, ao lado de cooperativas, dando impulso a
empreendimentos, construindo casas, trabalhando abnegadamente nas áreas da
saúde, desporto e educação. Estou convencido de que a cooperação amistosa com
os movimentos populares pode robustecer estes esforços e fortalecer os
processos de mudança.
No coração,
tenhamos sempre a Virgem Maria, uma jovem humilde duma pequena aldeia perdida
na periferia dum grande império, uma mãe sem tecto que soube transformar um
curral de animais na casa de Jesus com uns pobres paninhos e uma montanha de
ternura. Maria é sinal de esperança para os povos que sofrem dores de parto até
que brote a justiça. Rezo à Virgem do Carmo, padroeira da Bolívia, para fazer
com que este nosso Encontro seja fermento de mudança.
3.
Por último, gostaria que reflectíssemos, juntos, sobre algumas tarefas
importantes neste momento histórico, pois queremos uma mudança positiva em
benefício de todos os nossos irmãos e irmãs. Disto estamos certos! Queremos uma
mudança que se enriqueça com o trabalho conjunto de governos, movimentos
populares e outras forças sociais. Sabemos isto também! Mas não é tão fácil
definir o conteúdo da mudança, ou seja, o programa social que reflicta este
projecto de fraternidade e justiça que esperamos. Neste sentido, não esperem
uma receita deste Papa. Nem o Papa nem a Igreja têm o monopólio da
interpretação da realidade social e da proposta de soluções para os problemas
contemporâneos. Atrever-me-ia a dizer que não existe uma receita. A história é
construída pelas gerações que se vão sucedendo no horizonte de povos que
avançam individuando o próprio caminho e respeitando os valores que Deus
colocou no coração.
Gostaria, no
entanto, de vos propor três grandes tarefas que requerem a decisiva
contribuição do conjunto dos movimentos populares:
3.1
A primeira tarefa é pôr a economia ao serviço dos povos.
Os seres humanos e
a natureza não devem estar ao serviço do dinheiro. Digamos NÃO a uma economia
de exclusão e desigualdade, onde o dinheiro reina em vez de servir. Esta
economia mata. Esta economia exclui. Esta economia destrói a Mãe Terra.
A economia não
deveria ser um mecanismo de acumulação, mas a condigna administração da casa
comum. Isto implica cuidar zelosamente da casa e distribuir adequadamente os
bens entre todos. A sua finalidade não é unicamente garantir o alimento ou um
«decoroso sustento». Não é sequer, embora fosse já um grande passo, garantir o
acesso aos “3 T” pelos quais combateis. Uma economia verdadeiramente
comunitária – poder-se-ia dizer, uma economia de inspiração cristã – deve garantir
aos povos dignidade, «prosperidade e civilização em seus múltiplos
aspectos».[1] Isto envolve os “3 T” mas também acesso à educação, à saúde, à
inovação, às manifestações artísticas e culturais, à comunicação, ao desporto e
à recreação. Uma economia justa deve criar as condições para que cada pessoa
possa gozar duma infância sem privações, desenvolver os seus talentos durante a
juventude, trabalhar com plenos direitos durante os anos de actividade e ter
acesso a uma digna aposentação na velhice. É uma economia onde o ser humano, em
harmonia com a natureza, estrutura todo o sistema de produção e distribuição de
tal modo que as capacidades e necessidades de cada um encontrem um apoio
adequado no ser social. Vós – e outros povos também – resumis este anseio duma
maneira simples e bela: «viver bem».
Esta economia é não
apenas desejável e necessária, mas também possível. Não é uma utopia, nem uma
fantasia. É uma perspectiva extremamente realista. Podemos consegui-la. Os
recursos disponíveis no mundo, fruto do trabalho intergeneracional dos povos e
dos dons da criação, são mais que suficientes para o desenvolvimento integral
de «todos os homens e do homem todo».[2] Mas o problema é outro. Existe um
sistema com outros objectivos. Um sistema que, apesar de acelerar
irresponsavelmente os ritmos da produção, apesar de implementar métodos na
indústria e na agricultura que sacrificam a Mãe Terra na ara da
«produtividade», continua a negar a milhares de milhões de irmãos os mais
elementares direitos económicos, sociais e culturais. Este sistema atenta
contra o projecto de Jesus.
A justa
distribuição dos frutos da terra e do trabalho humano não é mera filantropia. É
um dever moral. Para os cristãos, o encargo é ainda mais forte: é um
mandamento. Trata-se de devolver aos pobres e às pessoas o que lhes pertence. O
destino universal dos bens não é um adorno retórico da doutrina social da
Igreja. É uma realidade anterior à propriedade privada. A propriedade,
sobretudo quando afecta os recursos naturais, deve estar sempre em função das
necessidades das pessoas. E estas necessidades não se limitam ao consumo. Não
basta deixar cair algumas gotas, quando os pobres agitam este copo que, por si
só, nunca derrama. Os planos de assistência que acodem a certas emergências
deveriam ser pensados apenas como respostas transitórias. Nunca poderão
substituir a verdadeira inclusão: a inclusão que dá o trabalho digno, livre,
criativo, participativo e solidário.
Neste caminho, os
movimentos populares têm um papel essencial, não apenas exigindo e reclamando,
mas fundamentalmente criando. Vós sois poetas sociais: criadores de trabalho,
construtores de casas, produtores de alimentos, sobretudo para os descartados
pelo mercado global.
Conheci de perto
várias experiências, onde os trabalhadores, unidos em cooperativas e outras
formas de organização comunitária, conseguiram criar trabalho onde só havia
sobras da economia idólatra. As empresas recuperadas, as feiras francas e as
cooperativas de catadores de papelão são exemplos desta economia popular que
surge da exclusão e que pouco a pouco, com esforço e paciência, adopta formas
solidárias que a dignificam. Quão diferente é isto do facto de os descartados
pelo mercado formal serem explorados como escravos!
Os governos que
assumem como própria a tarefa de colocar a economia ao serviço das pessoas
devem promover o fortalecimento, melhoria, coordenação e expansão destas formas
de economia popular e produção comunitária. Isto implica melhorar os processos
de trabalho, prover de adequadas infra-estruturas e garantir plenos direitos
aos trabalhadores deste sector alternativo. Quando Estado e organizações
sociais assumem, juntos, a missão dos “3 T”, activam-se os princípios de
solidariedade e subsidiariedade que permitem construir o bem comum numa democracia
plena e participativa.
3.2
A segunda tarefa é unir os nossos povos no caminho da paz e da justiça.
Os povos do mundo
querem ser artífices do seu próprio destino. Querem caminhar em paz para a
justiça. Não querem tutelas nem interferências, onde o mais forte subordina o
mais fraco. Querem que a sua cultura, o seu idioma, os seus processos sociais e
tradições religiosas sejam respeitados. Nenhum poder efectivamente constituído
tem direito de privar os países pobres do pleno exercício da sua soberania e,
quando o fazem, vemos novas formas de colonialismo que afectam seriamente as
possibilidades de paz e justiça, porque «a paz funda-se não só no respeito
pelos direitos do homem, mas também no respeito pelo direito dos povos,
sobretudo o direito à independência».[3]
Os povos da América
Latina alcançaram, com um parto doloroso, a sua independência política e, desde
então, viveram já quase dois séculos duma história dramática e cheia de
contradições procurando conquistar uma independência plena.
Nos últimos anos,
depois de tantos mal-entendidos, muitos países latino-americanos viram crescer
a fraternidade entre os seus povos. Os governos da região juntaram seus
esforços para fazer respeitar a sua soberania, a de cada país e a da região
como um todo que, de forma muito bela como faziam os nossos antepassados,
chamam a «Pátria Grande». Peço-vos, irmãos e irmãs dos movimentos populares,
que cuidem e façam crescer esta unidade. É necessário manter a unidade contra
toda a tentativa de divisão, para que a região cresça em paz e justiça.
Apesar destes
avanços, ainda subsistem factores que atentam contra este desenvolvimento
humano equitativo e coarctam a soberania dos países da «Pátria Grande» e
doutras latitudes do Planeta. O novo colonialismo assume variadas fisionomias.
Às vezes, é o poder anónimo do ídolo dinheiro: corporações, credores, alguns
tratados denominados «de livre comércio» e a imposição de medidas de
«austeridade» que sempre apertam o cinto dos trabalhadores e dos pobres. Os
bispos latino-americanos denunciam-no muito claramente, no documento de
Aparecida, quando afirmam que «as instituições financeiras e as empresas
transnacionais se fortalecem ao ponto de subordinar as economias locais,
sobretudo debilitando os Estados, que aparecem cada vez mais impotentes para
levar adiante projetos de desenvolvimento a serviço de suas populações».[4]
Noutras ocasiões, sob o nobre disfarce da luta contra a corrupção, o
narcotráfico ou o terrorismo – graves males dos nossos tempos que requerem uma
acção internacional coordenada – vemos que se impõem aos Estados medidas que
pouco têm a ver com a resolução de tais problemáticas e muitas vezes tornam as coisas
piores.
Da mesma forma, a
concentração monopolista dos meios de comunicação social que pretende impor
padrões alienantes de consumo e certa uniformidade cultural é outra das formas
que adopta o novo colonialismo. É o colonialismo ideológico. Como dizem os
bispos da África, muitas vezes pretende-se converter os países pobres em «peças
de um mecanismo, partes de uma engrenagem gigante».[5]
Temos de reconhecer
que nenhum dos graves problemas da humanidade pode ser resolvido sem a
interacção dos Estados e dos povos a nível internacional. Qualquer acto de
envergadura realizado numa parte do Planeta repercute-se no todo em termos
económicos, ecológicos, sociais e culturais. Até o crime e a violência se
globalizaram. Por isso, nenhum governo pode actuar à margem duma
responsabilidade comum. Se queremos realmente uma mudança positiva, temos de
assumir humildemente a nossa interdependência. Mas interacção não é sinónimo de
imposição, não é subordinação de uns em função dos interesses dos outros. O
colonialismo, novo e velho, que reduz os países pobres a meros fornecedores de
matérias-primas e mão de obra barata, gera violência, miséria, emigrações
forçadas e todos os males que vêm juntos... precisamente porque, ao pôr a
periferia em função do centro, nega-lhes o direito a um desenvolvimento
integral. Isto é desigualdade, e a desigualdade gera violência que nenhum
recurso policial, militar ou dos serviços secretos será capaz de deter.
Digamos NÃO às
velhas e novas formas de colonialismo. Digamos SIM ao encontro entre povos e
culturas. Bem-aventurados os que trabalham pela paz.
Aqui quero deter-me
num tema importante. É que alguém poderá, com direito, dizer: «Quando o Papa
fala de colonialismo, esquece-se de certas acções da Igreja». Com pesar, vo-lo
digo: Cometeram-se muitos e graves pecados contra os povos nativos da América,
em nome de Deus. Reconheceram-no os meus antecessores, afirmou-o o CELAM e
quero reafirmá-lo eu também. Como São João Paulo II, peço que a Igreja «se
ajoelhe diante de Deus e implore o perdão para os pecados passados e presentes
dos seus filhos».[6] E eu quero dizer-vos, quero ser muito claro, como foi São
João Paulo II: Peço humildemente perdão, não só para as ofensas da própria
Igreja, mas também para os crimes contra os povos nativos durante a chamada
conquista da América.
Peço-vos também a
todos, crentes e não crentes, que se recordem de tantos bispos, sacerdotes e
leigos que pregaram e pregam a boa nova de Jesus com coragem e mansidão,
respeito e em paz; que, na sua passagem por esta vida, deixaram impressionantes
obras de promoção humana e de amor, pondo-se muitas vezes ao lado dos povos
indígenas ou acompanhando os próprios movimentos populares mesmo até ao
martírio. A Igreja, os seus filhos e filhas, fazem parte da identidade dos
povos na América Latina. Identidade que alguns poderes, tanto aqui como noutros
países, se empenham por apagar, talvez porque a nossa fé é revolucionária,
porque a nossa fé desafia a tirania do ídolo dinheiro. Hoje vemos, com horror,
como no Médio Oriente e noutros lugares do mundo se persegue, tortura,
assassina a muitos irmãos nossos pela sua fé em Jesus. Isto também devemos
denunciá-lo: dentro desta terceira guerra mundial em parcelas que vivemos, há
uma espécie de genocídio em curso que deve cessar.
Aos irmãos e irmãs
do movimento indígena latino-americano, deixem-me expressar a minha mais
profunda estima e felicitá-los por procurarem a conjugação dos seus povos e
culturas segundo uma forma de convivência, a que eu chamo poliédrica, onde as
partes conservam a sua identidade construindo, juntas, uma pluralidade que não
atenta contra a unidade, mas fortalece-a. A sua procura desta
interculturalidade que conjuga a reafirmação dos direitos dos povos nativos com
o respeito à integridade territorial dos Estados enriquece-nos e fortalece-nos
a todos.
3.3
A terceira tarefa, e talvez a mais importante que devemos assumir hoje, é
defender a Mãe Terra.
A casa comum de
todos nós está a ser saqueada, devastada, vexada impunemente. A covardia em
defendê-la é um pecado grave. Vemos, com crescente decepção, sucederem-se uma
após outra cimeiras internacionais sem qualquer resultado importante. Existe um
claro, definitivo e inadiável imperativo ético de actuar que não está a ser
cumprido. Não se pode permitir que certos interesses – que são globais, mas não
universais – se imponham, submetendo Estados e organismos internacionais, e
continuem a destruir a criação. Os povos e os seus movimentos são chamados a
clamar, mobilizar-se, exigir – pacífica mas tenazmente – a adopção urgente de
medidas apropriadas. Peço-vos, em nome de Deus, que defendais a Mãe Terra.
Sobre este assunto, expressei-me devidamente na carta encíclica Laudato si’.
4.
Para concluir, quero dizer-lhes novamente: O futuro da humanidade não está
unicamente nas mãos dos grandes dirigentes, das grandes potências e das elites.
Está fundamentalmente nas mãos dos povos; na sua capacidade de se organizarem e
também nas suas mãos que regem, com humildade e convicção, este processo de
mudança. Estou convosco. Digamos juntos do fundo do coração: nenhuma família
sem tecto, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhum
povo sem soberania, nenhuma pessoa sem dignidade, nenhuma criança sem infância,
nenhum jovem sem possibilidades, nenhum idoso sem uma veneranda velhice.
Continuai com a vossa luta e, por favor, cuidai bem da Mãe Terra. Rezo por vós,
rezo convosco e quero pedir a nosso Pai Deus que vos acompanhe e abençoe, que
vos cumule do seu amor e defenda no caminho concedendo-vos, em abundância,
aquela força que nos mantém de pé: esta força é a esperança, a esperança que
não decepciona. Obrigado! E peço-vos, por favor, que rezeis por mim.
[1] JOÃO XXIII,
Carta enc. Mater et Magistra (15 de Maio de 1961), 3: AAS 53 (1961), 402.
[2] PAULO VI, Carta
enc. Popolorum progressio, 14.
[3] PONTIFÍCIO
CONSELHO «JUSTIÇA E PAZ», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 157.
[4] V CONFERÊNCIA
GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO E DO CARIBE (2007), Documento de
Aparecida, 66.
[5] JOÃO PAULO II,
Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in Africa (14 de Setembro de 1995), 52: AAS 88
(1996), 32-33. Cf. IDEM, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de
1987), 22: AAS 80 (1988), 539.
[6] JOÃO PAULO II,
Bula Incarnationis mysterium, 11.
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