sexta-feira, 26 de agosto de 2016

O RITUAL DE HOJE

O RITUAL DE HOJE NO SENADO NÃO TEM IMPORTÂNCIA ALGUMA

Hoje entenderemos melhor o que Debord e Christoph Turcke tentaram nos explicar. Vivemos numa sociedade em que o espetacular chama nossa atenção. O olhar parece capturado pela luz fria das vitrines da loja de grife.
Hoje o Senado faz seu espetáculo. Sem qualquer importância real. Um ritual de morte, de extinção. Não da atual Presidente eleita. Mas da tentativa da Pax Social inscrita na Constituição de 1988.

Alguns que já foram tomados por esta lógica da predominância da estética da festa sobre a racionalidade ética e dos princípios democráticos ainda perguntam, como ao acordar questionam seu relógio se é cedo ou tarde, qual o motivo para tanta indignação se o impeachment é previsto em lei.

O problema da sociedade do espetáculo é que o formalismo das tintas é mais visível para o espectador que o mundo real que o inspirou. Há uma evidente lacuna legal em nosso país em relação a este caso. O processo está definido, mas é evidente que o rabo de Satanás não consegue se esconder por entre os panos que tentam descerrar para cobrir a cena final.

Não há como não deixar de perceber, lá no fundo do palco, o presidente interino conspirando contra sua companheira de chapa. Ora, isto também é tipificado em lei. Também não é possível encobrir que o presidente interino trouxe para o centro do governo aqueles que foram derrotados pelas urnas ainda há pouco. Isto, evidentemente, é golpear a vontade popular.
Não é possível que a foto saia sem registrar que todo o pacto nacional por um ainda débil Estado Social esteja sendo desmontado pela ganância do empresariado mais impopular e insensível do planeta, pobre de espírito e com baixa formação intelectual. Nosso empresariado é ainda tacanho, feitor, mergulhado numa cultura estamental, sempre focado em capturar o orçamento forjado pelos contribuintes pobres deste país.

Dilma Rousseff não nasceu para governar. Não soube manter uma linha clara de gestão. Cedeu sempre à direita. Mas Michel Temer tampouco foi talhado para o cargo. Cometeu os mesmos erros que a titular, mas desfila como um burocrata do mundo soviético em pleno final dos anos 1980. Não contente em cometer os mesmos erros, se posta de costas aos interesses da grande maioria - que conhece muito bem - e parece se acostumar com a penumbra que construíram para protegê-lo dos apupos quando da abertura dos jogos Olímpicos.
Michel Temer é um político da penumbra, do lusco-fusco.

O espetáculo de hoje, farsesco, é uma perda de tempo e dinheiro público. Um espetáculo mambembe sem convicção sobre o texto que declama. Quem, ainda, em sã consciência, pode acreditar que ali há algo indefinido ou que se pauta pelo interesse público? Porque, até aqui, nada deste processo teve relação com o interesse público. A fartura de reportagens não deixa dúvidas dos interesses particulares negociados por senadores do DF ou do RJ (para citar dois Estados muito citados que tiveram cargos federais negociados com suas bancadas para chegarem com a consciência tranquila ao espetáculo de hoje).

Mas, todo espetáculo tem seu fim. A trama se desenrola e chega ao ápice. E, dele nasce outro script e um novo discurso artístico.

Não há dúvida alguma que a grande massa da população brasileira não se deixa enganar. Não se deixou enganar pelo discurso de Dilma Rousseff, mas não se engana com Temer (somente 11% dos brasileiros apoiam sua gestão interina e desejam que continue com seu plano de destruição e negação da maioria), assim como não se deixa enganar pelos seus sócios tucanos (todos candidatos tucanos ao governo federal apresentam queda consistente na intenção de voto popular para 2018).

Como afirmou recentemente Gilberto Velho, os brasileiros dos grotões, com acesso às informações via televisão e internet, já não formam os currais ingênuos e manietados de antes. Walquíria Leão Rêgo, ao pesquisar as beneficiárias do Bolsa Família por 5 anos, de alguma maneira corroborou esta afirmação ao nos revelar que não são ingênuas e que acreditam que as políticas de transferência de renda são direitos (destacam que se os políticos abocanham valores indevidos, mais direito ainda elas têm de receber algo para sobreviver) ou que o que pode ser um álibi para algum político nacional é sua origem pobre em virtude do passado poder cutucar sua consciência em algum momento. Isto tem nome: consciência de classe. Uma consciência que os marxistas denominaram de "consciência em si", talvez algo além disto, mas ainda como elaboração primária que a dura vida e a experiência de quem já foi enganado tanta vezes confere.

Este mundo real, no chão batido do Brasil, não tem relação alguma com a pantomima de hoje no Senado. São mundos tão apartados e distantes que parecem uma exibição de kabuqui na abertura do Carnaval de Salvador. Um espetáculo. Sem sentido, sem paixão, sem razão, sem beleza. Uma breguice para esvaziar nossos olhos, embotados de cansaço e frustração.

Está acabando este ritual macabro da elite. Imaginam que agora vai começar a festa de comemoração do sucesso. Se enganam. Agora começará o seu fim. Lentamente. Como compete a um bom roteiro dramático.

SÉRIE: OBSERVAÇÕES DE RUDÁ

terça-feira, 23 de agosto de 2016

O BRASIL E A “ALUCINAÇÃO NEGATIVA”

Postado em 23/08/2016 

Brunhilde Pomsel, ex-secretária de Joseph Goebbels.

Por Flávio Aguiar.
Nestes tempos de golpe de estado no Brasil as conversas podem ficar muito difíceis. Amizades podem virar pó de uma hora para outra. Conheço inúmeros casos.
Comigo também se passou algo parecido. Um amigo – ou ex-amigo, nesta altura – virou um anti-petista ferrenho, o que é, convenhamos, um direito dele. Ele já era de direita, o que também é um direito dele. Mas extrapolou.
Acontece que diante de afirmações como a de que “mas durante os governos de Lula e Dilma a situação dos pobres melhorou, a miséria diminuiu, o padrão de vida dos trabalhadores assalariados subiu, etc.”, ele passou a reagir raivosamente: “é tudo mentira”. “Nada disto aconteceu”.
Um dos problemas aí é que tal reação chama de mentirosos não só Lula, Dilma, o PT, os petistas, e eu de quebra, mas também a ONU, a OEA, a OIT, a UNESCO, a FAO, boa parte da União Europeia, a Itália, que recentemente adotou um projeto do tipo Bolsa Família, economistas indianos, a OCDE, além do IBGE, naturalmente, e etc.
O outro problema é que isto é repetido ad nauseam pelo exército de coxinhas e paneleiras(os) que infesta as ruas e nossos ouvidos de vez em quando (andam mais discretos, aliás…), além dos arautos do antipetismo distribuídos pela mídia conservadora, quando não estão ocupados em obter os vazamentos seletivos de quanta operação seja urdida por promotores que se arvoram a juízes, juízes que se adoram promotores e policiais federais que se arvoram a promotores e juízes.
Mutatis mutandis, isto me lembra o comportamento de gente que até hoje nega o Holocausto, por exemplo. Ou então a entrevista recente dada pela ex-secretária de Joseph Goebbels, hoje com 105 anos (!) e a única sobrevivente do círculo próximo do Führer. Nela, a entrevistada afirma , sobre os crimes genocidas dos nazistas, que “não sabia de nada”, que só datilografava o tempo inteiro. A provecta senhora que me desculpe, com todo o respeito, mas é mais fácil acreditar que ela simplesmente não queria saber de nada desde sempre. Posto que ela até se recorda do estranho sumiço de amiga judia. Sé depois da guerra ela ficou sabendo que esta pessoa fora levada para Auschwitz. O mesmo aconteceu e acontece com gente que até hoje nega que tenha havido tortura no Brasil durante o regime civil-militar de 1964. Ou os que o querem de volta, embora haja os que querem que ele volte com tortura e tudo.
Curioso, perguntei a um outro amigo meu, psicanalista, como se poderia chamar esta atitude de negação contumaz da realidade. Ele me disse que há uma qualificação clássica na psicanálise que se chama de “alucinação negativa”, em que as pessoas que dela são objetos se negam a ver uma coisa – até mesmo objetos concretos, por vezes, ou a ouvir algo que não querem admitir. Pesquisando mais um pouco, deparei com experiências mostrando que esta “alucinação negativa” pode ser induzida até por hipnose que, no fundo, é o que a nossa mídia tradicional costuma praticar, seguindo a orientação famosa daquele mesmo Goebbels acima lembrado, de se mentir tanto até que a mentira vire verdade. É claro que é necessário um tipo de consentimento por parte do objeto de tal manipulação.
Tudo isto vem na esteira do esforço de aleijar e alijar a esquerda na história não só futura – mas também do passado. Os governos de esquerda é que são os responsáveis pelo desarrazoado do mundo e das economias – da brasileira e da mundial. Eles nada fizeram senão cometer erros e mais erros; tudo não passou de uma “ilusão”. A “mentira” do meu amigo lá de cima.
O curioso é que existe também muito intelectual e analista de esquerda que pensa assim, inclusive aqui na Europa. Pululam os intelectuais que pregam que tudo o que a esquerda latino-americana, não só a brasileira, fez nos últimos anos foi só uma ilusão. E que eles, estes intelectuais e analistas, é que sabem o que nós, os latino-americanos, deveríamos ter feito, fazer e vir a fazer. Esquecem (será também uma alucinação negativa?) que aqui na Europa só há dois governos de esquerda: o de Portugal, com uma frente tripla reunindo o PS, os comunistas e verdes (hoje um partido só) e o movimento Bloco de Esquerda, e o do Vaticano, com o Papa mais à esquerda da história da Santa Madre. Nem na Espanha o Podemos e o PSOE conseguiram se juntar, ao invés de se bicar, para formar um governo. França, Alemanha, Itália, nem pensar. O governo de extrema-esquerda na Grécia foi dobrado a golpes de retórica. E aplicou o programa do Banco Central Europeu mais o Banco Central Alemão e o chanceler Wolfgang Schäuble, tão mau quanto Meirelles. A esquerda, aqui, virou um nicho universitário, em 95% dos casos.
Mas eles, os intelectuais europeus, é que sabem o que é melhor para o mundo.
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel (2012). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.