Postado em 23/08/2016
Brunhilde Pomsel, ex-secretária de Joseph Goebbels.
Por Flávio Aguiar.
Nestes tempos de golpe de
estado no Brasil as conversas podem ficar muito difíceis. Amizades podem virar
pó de uma hora para outra. Conheço inúmeros casos.
Comigo também se passou
algo parecido. Um amigo – ou ex-amigo, nesta altura – virou um anti-petista ferrenho,
o que é, convenhamos, um direito dele. Ele já era de direita, o que também é um
direito dele. Mas extrapolou.
Acontece que diante de
afirmações como a de que “mas durante os governos de Lula e Dilma a situação
dos pobres melhorou, a miséria diminuiu, o padrão de vida dos trabalhadores
assalariados subiu, etc.”, ele passou a reagir raivosamente: “é tudo mentira”.
“Nada disto aconteceu”.
Um dos problemas aí é que
tal reação chama de mentirosos não só Lula, Dilma, o PT, os petistas, e eu de
quebra, mas também a ONU, a OEA, a OIT, a UNESCO, a FAO, boa parte da União
Europeia, a Itália, que recentemente adotou um projeto do tipo Bolsa Família,
economistas indianos, a OCDE, além do IBGE, naturalmente, e etc.
O outro problema é que
isto é repetido ad nauseam pelo exército de coxinhas e paneleiras(os)
que infesta as ruas e nossos ouvidos de vez em quando (andam mais discretos,
aliás…), além dos arautos do antipetismo distribuídos pela mídia conservadora,
quando não estão ocupados em obter os vazamentos seletivos de quanta operação
seja urdida por promotores que se arvoram a juízes, juízes que se adoram
promotores e policiais federais que se arvoram a promotores e juízes.
Mutatis mutandis, isto me
lembra o comportamento de gente que até hoje nega o Holocausto, por exemplo. Ou
então a entrevista recente dada pela ex-secretária de Joseph Goebbels, hoje com
105 anos (!) e a única sobrevivente do círculo próximo do Führer. Nela, a
entrevistada afirma , sobre os crimes genocidas dos nazistas, que “não sabia de
nada”, que só datilografava o tempo inteiro. A provecta senhora que me
desculpe, com todo o respeito, mas é mais fácil acreditar que ela simplesmente
não queria saber de nada desde sempre. Posto que ela até se recorda do estranho
sumiço de amiga judia. Sé depois da guerra ela ficou sabendo que esta pessoa
fora levada para Auschwitz. O mesmo aconteceu e acontece com gente que até hoje
nega que tenha havido tortura no Brasil durante o regime civil-militar de 1964.
Ou os que o querem de volta, embora haja os que querem que ele volte com
tortura e tudo.
Curioso, perguntei a um
outro amigo meu, psicanalista, como se poderia chamar esta atitude de negação
contumaz da realidade. Ele me disse que há uma qualificação clássica na
psicanálise que se chama de “alucinação negativa”, em que as pessoas que dela
são objetos se negam a ver uma coisa – até mesmo objetos concretos, por vezes,
ou a ouvir algo que não querem admitir. Pesquisando mais um pouco, deparei com
experiências mostrando que esta “alucinação negativa” pode ser induzida até por
hipnose que, no fundo, é o que a nossa mídia tradicional costuma praticar,
seguindo a orientação famosa daquele mesmo Goebbels acima lembrado, de se
mentir tanto até que a mentira vire verdade. É claro que é necessário um tipo
de consentimento por parte do objeto de tal manipulação.
Tudo isto vem na esteira
do esforço de aleijar e alijar a esquerda na história não só futura – mas
também do passado. Os governos de esquerda é que são os responsáveis pelo
desarrazoado do mundo e das economias – da brasileira e da mundial. Eles nada
fizeram senão cometer erros e mais erros; tudo não passou de uma “ilusão”. A
“mentira” do meu amigo lá de cima.
O curioso é que existe
também muito intelectual e analista de esquerda que pensa assim, inclusive aqui
na Europa. Pululam os intelectuais que pregam que tudo o que a esquerda
latino-americana, não só a brasileira, fez nos últimos anos foi só uma ilusão.
E que eles, estes intelectuais e analistas, é que sabem o que nós, os
latino-americanos, deveríamos ter feito, fazer e vir a fazer. Esquecem (será
também uma alucinação negativa?) que aqui na Europa só há dois governos de
esquerda: o de Portugal, com uma frente tripla reunindo o PS, os comunistas e
verdes (hoje um partido só) e o movimento Bloco de Esquerda, e o do Vaticano,
com o Papa mais à esquerda da história da Santa Madre. Nem na Espanha o Podemos
e o PSOE conseguiram se juntar, ao invés de se bicar, para formar um governo.
França, Alemanha, Itália, nem pensar. O governo de extrema-esquerda na Grécia
foi dobrado a golpes de retórica. E aplicou o programa do Banco Central Europeu
mais o Banco Central Alemão e o chanceler Wolfgang Schäuble, tão mau quanto
Meirelles. A esquerda, aqui, virou um nicho universitário, em 95% dos casos.
Mas eles, os intelectuais
europeus, é que sabem o que é melhor para o mundo.
***
Flávio
Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na
Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras.
Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica
literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da
Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999),
publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea
de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009),
finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011)
e o recente lançamento A
Bíblia segundo Beliel (2012). Colabora com o Blog da
Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário